O poder do tráfico
Natanael (nome fictício) tem apenas 16 anos e já convive com a certeza de que a qualquer momento pode ser surpreendido por alguma das mazelas que circundam o mundo do crime. O medo dele é terminar como um dos irmãos, que foi assassinado após se envolver com o tráfico de drogas. “Meu irmão morreu desse jeito. Não quero que minha mãe sofra ainda mais”, afirma, com o desejo de um dia ter forças para abandonar essa vida cheia de incertezas.
Apesar da pouca idade, Natanael é traficante em uma cidade satélite do Distrito Federal. Ele diz ter autonomia no comércio dos entorpecentes. Mas, antes disso, o adolescente passou por um período de experiência. “Comecei com 14 anos, como aviãozinho. Os traficantes me davam dinheiro para repassar as drogas. Se você conseguir chegar no nível máximo e não morrer antes, você sobe de posição.” Segundo o garoto, é tudo muito bem organizado: o sistema funciona como uma empresa, existe a diretoria, o setor administrativo, os chefes e os colaboradores. Cada um tem uma obrigação dentro da hierarquia do tráfico.
As substâncias que Natanael comercializa vêm principalmente das rodovias que cortam o Distrito Federal. Segundo o delegado Leonardo Cardoso, responsável pela Coordenação de Repressão às Drogas da Polícia Civil (Cord), as BRs 040 e 060 são as principais rotas de entrada de entorpecentes no DF. Porém, há pouco tempo as quadrilhas passaram a utilizar também a BR 070. “A droga normalmente vem do Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, passa por São Paulo, Minas ou Goiás e chega ao DF”, revela. Além de parada final, por aqui inclusive passam os carregamentos com destino ao Nordeste pela BR 020.
"Se conseguir chegar no nível máximo e não morrer antes, você sobe de posição"
Natanael, 16 anos

Leonardo Cardoso ressalta que em 2017 a Polícia Civil apreendeu, juntamente com o apoio da Polícia Militar, mais de 5 toneladas de drogas no DF. Já a Polícia Rodoviária Federal (PRF), outras 2 toneladas. Maconha é a substância mais capturada. Em seguida vem a cocaína e as outras como o crack. “A maconha vem quase sempre do Paraguai, entrando por Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, ou Foz do Iguaçu, no Paraná. Já a cocaína, passa pela Amazônia, Mato Grosso, Rondônia, oriunda da Bolívia.”
Em todo o Brasil, também em 2017, a PRF foi responsável pela apreensão de quase 400 toneladas de maconha, 1,5 toneladas de crack e 10 toneladas de cocaína, além de 9,5 milhões de pacotes de cigarros contrabandeados. O DF fica no meio de rotas de tráfico de drogas. A posição geográfica central dentro do país é favorável.


Destino traçado
Mesmo afirmando existir fiscalização constante, muita droga ainda passa despercebida pelas autoridades. Essa situação faz com que o tráfico aumente cada vez mais, assim como o percentual de dependentes químicos. Mas o problema não é exclusividade da periferia. Afeta, inclusive, o centro de Brasília. A Rodoviária do Plano Piloto e o Buraco do Tatu, no Setor Comercial Sul, por exemplo, estão a poucos quilômetros da Praça dos Três Poderes e os índices de tráfico e uso nos locais são altos.
Para o delegado Leonardo Cardoso, esse grave problema vai além da Segurança Pública. “É um problema social”, chama atenção. “As polícias tem atuado muito. Mas a Lei determina que o consumo é um crime de menor potencial ofensivo. Os usuários pegos com a droga são levados para a delegacia e pouco depois eles já retornam para o mesmo local.” Leonardo afirma ainda que desde que se instalou as audiências de custódia, mesmo que os traficantes sejam flagrados portando entorpecentes, não é possível mantê-los presos por muito tempo.

O centro de Brasília é a região onde há mais tráfico e consumo de drogas nas ruas do Distrito Federal
O balanço criminal da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) aponta 2.577 casos de tráfico de drogas em todo o Distrito Federal em 2017. Já as ocorrências por uso e porte dos entorpecentes foram 5.722. Cidades como Ceilândia, Taguatinga, Planaltina, Samambaia, Santa Maria, São Sebastião e Brasília tiveram os maiores índices de criminalidade.

Problema social
O tráfico é lucrativo, como ressalta Natanael. “Chegam os tijolos aqui para a gente e então dividimos em porções. Eu vendo, normalmente, cada porção por R$ 5.” Quando questionado sobre o faturamento, ele é claro: “Dá para viver muito bem. Eu tiro mais de R$ 3 mil por mês."
Natanael confirma o que todos especialistas destacam: a dependência não escolhe raça, cor, gênero ou classe social. Ele vende os entorpecentes na periferia, mas os clientes são desde pessoas mais pobres até aquelas com alto poder aquisitivo. Consciente do poder destrutivo das drogas e com receio de estragar os negócios, o jovem traficante limita-se ao uso apenas da maconha.
Assim como Natanael, menores de idade são alvos fáceis para os grandes traficantes. Caso a polícia faça abordagens, por exemplo, quem leva a culpa são eles. Sabem muito bem que não podem ser presos, pois a legislação não permite. O máximo que pode acontecer é serem encaminhados à Delegacia de Crianças e Adolescentes e terem as substâncias apreendidas. Somente em alguns casos é que os menores infratores são internados em centros socioeducativos. “Já fui pego pela polícia diversas vezes, mas nunca fui preso. Tô de boa.”
A mesma sorte não teve Ricardo (nome fictício), hoje com 23 anos. Saiu da prisão há poucos meses, mas ainda insiste no mundo do crime. Ele lista as drogas que já usou: “Pó, lança-perfume, roupinol, LSD, ecstasy. Só não usei pedra, mas o resto...”.
"Aqui a sua liberdade está
em jogo"
Ricardo, 23 anos
O jovem sugere que o preconceito e a falta de oportunidades motivaram ele a recorrer ao tráfico para sobreviver. “Ninguém quer contratar uma pessoa que acabou de sair da cadeia, não”, lamenta. Mas quando perguntado sobre os riscos dessa vida fora da lei, ele sorri desconfiado e responde: “Aqui a sua liberdade está em jogo.”
A trajetória de Ricardo com as drogas começou aos 15 anos de idade. “Minha mãe nem sabia. Eu saía, e ela pensava que estava jogando bola. Aí um dia descobriu. Sempre vinha atrás de mim.”
Porém, a família já não se preocupa mais, conta. Foram tantas tentativas, que a própria mãe o abandonou. "Agora sofro as consequências de ficar ‘de maior.’” Mesmo sabendo dessas tais consequências, Ricardo prefere traficar. “Rapaz... isso aqui dá um dinheirinho. Quem não quer dinheiro fácil?”, indaga.
Especialista em assistência social, Emanuela Barros confirma essa realidade. Pondera que uma das partes mais difíceis para uma pessoa que deseja abandonar as drogas e o crime é a reinserção na sociedade. Ela cita um exemplo de vida, que mudou seu modo de pensar. Quando tinha 14 anos, a mãe dela empregou um rapaz ex-usuário de entorpecentes. “Vemos que, se você tem a ficha suja, dificilmente se consegue um emprego. Junta-se um pouco de cada coisa desse macrossistema, e vira um grande problema. Quanto mais problemas nós temos para gerar emprego, mais o crime aparece. Precisamos de soluções práticas e objetivas”, complementa Emanuela.
Natanael e Ricardo são o retrato de um Brasil que está longe de resolver a questão das drogas.

De usuário a dependente
“Eu quero que as pessoas conheçam a minha história e vejam a minha vida como exemplo do que não devem seguir.” Se soubesse das consequências do uso abusivo de drogas, Cícero Oderlan dos Santos, 34 anos, jamais teria cedido à curiosidade que o fez acender o primeiro cigarro de maconha, ainda criança, aos 10 anos, quando vivia no Ceará. Refém dos efeitos, ele sempre queria mais. Conheceu outras drogas e, para suprir a necessidade que o corpo tinha, passou a roubar nas redondezas de onde morava. “Fazer o quê? A lombra era gostosa demais”, recorda.
As drogas atuam no sistema de recompensa do cérebro, área que recebe estímulos de prazer e transmite a sensação pelo corpo. A alteração do padrão de funcionamento do sistema nervoso central faz com que, gradativamente, o organismo induza o indivíduo a buscar a satisfação imediata e ignorar as fontes de prazer naturais, como explica o psiquiatra Pedro Leopoldo. “Ao longo da vida, o adicto constitui que prazer é consumir, só que esse consumo gera uma satisfação muito alta, que os prazeres nossos de cada dia não são capazes de dar”, afirma.
De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas, da Organização das Nações Unidas (UNODC), em 2015 cerca de 250 milhões de pessoas usavam drogas. A ONU estima ainda que, do total, cerca de 29,5 milhões apresentam algum tipo de transtorno
relacionado ao uso, incluindo a dependência química. Para a psicóloga comportamental Alline Silva, o que diferencia o usuário do dependente químico é o grau de prejuízos que as drogas causam em ambos. “Mesmo sofrendo consequências físicas, emocionais, sociais, o dependente não consegue abandonar o uso”, ressalta.
O vício pode ser desenvolvido a partir de diversas questões, uma delas é a predisposição genética, quando o adicto já teve outros casos na família. Fatores psicológicos e comportamentais também são importantes para o desdobramento do problema, como aponta o especialista Pedro Leopoldo. “Eu aprendo emoções no ambiente que sou criado, e, se esse ambiente é doente, a tendência de eu adoecer é muito grande”, destaca. A complexidade do distúrbio faz com que a doença seja causada por questões multifatoriais, e até mesmo o ambiente social pode se tornar um aspecto de risco. “Se a pessoa está inserida em um local de fácil acesso à droga ou se tem uma rede social que favorece isso, ela se torna mais vulnerável ao uso e à dependência”, explica Alline Silva.


"Eu quero que vejam a minha
vida como exemplo do que não devem seguir"
Cícero, 34 anos
Foi o que aconteceu com Cícero. De usuário, ele passou a ser dependente de drogas, entre elas, o crack, substância considerada uma das mais devastadoras do organismo. Durante os 15 anos entregue ao vício ele morou na rua e passou por diversos lugares do Brasil como andarilho. Em São Paulo chegou a traficar drogas a mando da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). “Um dia eu fui pra matar um cara que estava me devendo, mas a polícia chegou na hora e eu fui preso”, conta.
O período que passou na cadeia não adiantou para Cícero, pois logo que deixou o local, o vício falou mais alto e ele se entregou novamente. A psicóloga Alline Silva explica que qualquer pessoa acostumada com alguma substância química passa pela abstinência quando interrompe o uso, processo que causa sintomas comportamentais, fisiológicos e cognitivos. Ela explica, ainda, que outra fase comum a um dependente é a fissura. “Quando a pessoa passa pela fissura ela sente um desejo quase que incontrolável de fazer uso da substância”, revela a terapeuta comportamental.
A vontade de usar drogas era tanta, que Cícero decidiu voltar para o crime. Arrombou um carro e foi pego no momento em que tirava o som do veículo para trocar por crack. “Nove caras me espancaram, eu fiquei desacordado e só não morri porque a polícia chegou na hora”, recorda ele, que ficou seis meses de cadeira de rodas e precisou ser alimentado por uma sonda depois da surra. O homem traz no corpo a sequela: uma deficiência na coluna, que marcará para sempre o antes e o depois da própria história.
Após o espancamento ele decidiu abandonar o submundo das drogas, mas o espírito itinerante não o deixou permanecer aos cuidados da família e, mais uma vez, ele partiu. “Quando cheguei em Brasília, na Rodoviária do Plano, um cara me ofereceu um monte de crack, na hora eu lembrei de tudo que me aconteceu e neguei. Não quero mais isso pra minha vida, não”, diz.


De volta ao Distrito Federal (DF) e agradecido pela nova chance que a vida lhe concedeu, atualmente Cícero vive em uma Casa de Apoio, no Gama ( DF), e tenta conseguir um futuro diferente. “Eu estou construindo uma nova história, porque o que eu vivi não era vida de gente. Me arrependo demais de tudo que fiz. Sofri muito mas estou conseguindo superar”, celebra.


Uma questão de saúde pública
O Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) aponta que, para cada dependente químico, outras quatro pessoas são afetadas. Além dos problemas causados no usuário, o vício adoece o sistema de saúde pública, que desembolsa, a cada década, cerca de R$ 7,76 bilhões para custear o tratamento de quem consome entorpecentes, entre 2005 e 2015, segundo o Ministério da Saúde.
Prevenção
A psiquiatra especialista em dependência química Maria Célia Brangioni explica que o fenômeno envolve questões biológicas, psíquicas e sociais, mas é a interação desses fatores que faz com que a pessoa desenvolva e permaneça na doença. Para ela, o distúrbio precisa ser tratado com cuidado, pois, diariamente crianças, adolescentes e jovens – que estão dentro da faixa etária considerada
de risco – experimentam algum tipo de droga. “É importante que existam campanhas de prevenção para que as pessoas entendam que as drogas têm o risco de causar a dependência”, explica.

No Distrito Federal, a Subsecretaria de Políticas para a Justiça, Cidadania e Prevenção ao Uso de Drogas (Subjuspred) desenvolve ações de prevenção com foco no público infantil como o projeto Camisa 10, uma parceria com a Secretaria de Educação, que usa o esporte para conscientizar alunos das séries iniciais do ensino fundamental. “Começar com a criança é importante para evitar a experimentação. Se você consegue interferir e mostrar que isso faz mal, a chance dela não se envolver é muito grande”, afirma a subsecretária e pedagoga Andressa Queiroz.
Para ela, falar sobre drogas para o público infantil exige cuidado e muita criatividade. Por isso, as ações direcionadas às crianças são desenvolvidas com uma linguagem específica. “Trabalhar com oficinas, levando atividades lúdicas e didáticas é uma ferramenta importante para construir a consciência que as drogas fazem mal”, conta.
Andressa Queiroz ressalta, ainda, que o trabalho preventivo deve envolver toda a comunidade, para que pais e professores consigam abordar a questão das drogas de uma forma mais adequada. “Nós começamos o trabalho, mas quem dá continuidade é a escola e os pais”, conclui.
Batalha desigual
De acordo com a psiquiatra Maria Célia Brangioni, quando o uso de drogas se torna uma patologia, é necessário ter recursos de tratamento em vários níveis de atenção: “Quadros moderados a graves precisam de serviços especializados pois carecem de mais recursos de intervenção, diferente de pacientes médios que podem ser tratados a nível ambulatorial”, ressalta. O tratamento para uma doença tão complexa é composto de diversas etapas, que vão desde ensinar o adicto outras fontes de prazer que não a droga, até a prevenção da recaída.
"Tem gente morrendo em função disso"
Maria Célia Brangioni, psiquiatra
Por que muita gente fala que a luta contra a dependência química está perdida? Para o especialista Pedro Leopoldo, isso ocorre porque o tratamento oferecido é meramente sintomático, ou seja, cuida da abstinência e da ansiedade causadas pela falta da droga, mas não abrange a origem do problema. A abordagem completa para tratar as dimensões, orgânica, ambiental e psicológica tem um custo muito alto, como ressalta o psiquiatra. “Quando a pessoa se depara com todos esses gastos não consegue arcar”, expõe.
Os valores do tratamento para alguém com transtornos decorrentes do abuso de drogas podem variar de acordo com o padrão de serviços oferecidos, o tempo para a desintoxicação e a metodologia de reabilitação. Em clínicas particulares, uma internação de sete meses pode chegar ao valor de R$ 56 mil, despesa que passa longe do orçamento da maioria das pessoas atingidas pelo transtorno.
Quem não tem condições de pagar precisa buscar ajuda do serviço público. Atualmente, o Distrito Federal conta com nove Centros de Atenção Psicossocial voltados ao cuidado de pessoas com problemas associados ao abuso de drogas (CAPS-AD) e, cerca de 12 mil já foram atendidas, de acordo com a Diretoria de Saúde Mental do DF (DISAM-DF). Mas o serviço não contempla a crescente demanda e muita gente fica sem ajuda. “A saúde pública precisa oferecer recursos de tratamento efetivo e hierarquizado para poder dar conta dessa população. Tem gente morrendo em função disso”, critica Maria Célia Brangioni.

O trabalho das comunidades terapêuticas
Resgatar pessoas que estão imersas no submundo das drogas e trazê-las de volta a uma vida com dignidade é parte do trabalho das Comunidades Terapêuticas (CTs), instituições sem fins lucrativos, com parte das despesas financiadas pelo Poder Público, e que oferecem tratamento gratuito com duração de até 12 meses. Apenas 11 instituições têm contrato com a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) no DF, e recebem recursos do Fundo Antidrogas do DF (Funpad).
O Instituto Crescer é uma dessas entidades. A fundadora da instituição, Areolnes Curcino Nogueira, explica que decidiu usar a casa onde morava, em Vicente Pires (DF), para acolher dependentes químicos após participar de um trabalho voluntário com um grupo da igreja. Porém, o serviço que a professora aposentada queria oferecer precisava muito mais do que boa vontade. Foi então que ela decidiu se capacitar e participou de vários cursos voltados ao assunto.

"O valor repassado é R$ 33,33 por dia. Isso não paga alimentação, medicamentos, água, energia"
Areolenes Nogueira, do Instituto Crescer
Em 2010, após acumular alguns certificados de capacitação na área e com um lugar pronto para receber pessoas que buscavam ajuda, decidiu formalizar a situação perante ao governo. “O processo de credenciamento é muito difícil, porque o próprio Estado dificulta as coisas com tanta burocracia”, diz.
As CTs legalizadas e conveniadas à Sejus recebem o valor mensal de R$ 1 mil por pessoa em tratamento, quantia, que, de acordo com Areolenes, não cobre as despesas. “O valor repassado é R$ 33,33 por dia. Isso não paga alimentação, medicamentos, água, energia”, afirma. Diante disso, a instituição coordenada por ela é mantida também por meio de doações da comunidade.
Para ter acesso à verba, que é gerida pelo Conselho de Políticas sobre Drogas do Distrito Federal (Conen-DF), a CT precisa atender a uma série de critérios, entre eles, a apresentação de um plano terapêutico, documento que explica a metodologia do tratamento oferecido, e garante a oportunidade de um acolhido se livrar do mundo das drogas, como afirma o presidente do Conen-DF, Anderson Moura. “Se não houver a execução de um plano terapêutico a contento, nós vamos apenas acolher pessoas para comer, beber e dormir”, justifica. “Nosso objetivo é trazer características no tratamento que possibilitem ao dependente fazer a opção de interromper o uso da droga”, completa. Até 2019, a Secretaria de Justiça e Cidadania pretende custear, com recursos do Funpad, mais 400 vagas em leitos de comunidades terapêuticas.

Políticas Públicas
O Governo do Distrito Federal (GDF) também aposta em convênios com entidades como a Casa Santo André, instituição sem fins lucrativos, que aborda pessoas em situação de rua e oferece ajuda para retirar documentos, ter acesso ao serviço médico, facilitar o retorno ao local de origem àqueles que desejam e encaminhar dependentes químicos para tratamento, de acordo com a necessidade individual. As pessoas que aceitam o auxílio podem ficar em uma das cinco casas no DF.
O coordenador geral da Casa Santo André, Cleven Rodrigues, explica que grande parte dos acolhidos participa de algum tipo de tratamento para controlar a compulsão pelo uso de drogas. Segundo ele, embora muitos cheguem às ruas sem o vício, a vulnerabilidade torna o uso uma questão de sobrevivência. “Uma vez eu perguntei para um morador de rua porque ele bebia e ouvi o seguinte: ‘A cachaça é o cobertor do pobre, se a gente não bebe o frio mata a gente, a cachaça alimenta também’. Então a rua ensina isso”, expõe. Os acolhidos que têm problemas com vício recebem atenção psicológica e podem ser tratados por diferentes meios, como explica Cleven Rodrigues. “Temos reuniões com grupos de troca de experiências como o Alcóolicos e Narcóticos Anônimos, também encaminhamos para o CAPS, e caso não dê certo, tentamos alguma comunidade terapêutica”, conta.

Esperança
Manoel Gonçalves Dias, 24 anos, vivia nas ruas de Sobradinho-DF quando foi abordado por funcionários da Casa Santo André e aceitou ajuda para tratar da saúde fragilizada. Os motivos que tiraram o jovem da casa onde morava e o levaram para sobreviver nas calçadas do mundo começaram ainda na infância.
Segundo ele, por causa do jeito de se vestir e da forma como se expressava cresceu acostumado a ouvir dos parentes que seria o único a “dar trabalho” para a família. “Por isso, eu decidi dar motivo para eles falarem... só que eu não sabia que ia me envolver tanto”, lembra. O primeiro contato com o submundo das drogas foi aos 18 anos, por meio de álcool e cigarro, logo depois a maconha, elementos suficientes para dar início a uma trajetória marcada pelo abandono dos estudos e a fuga de casa. “Quando eu fui morar na rua conheci a cocaína, que terminou de me afundar. É quase a mesma coisa que o crack”, conta.
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O rompimento do vínculo familiar fez Manoel se entregar de vez. E, por isso, ele passou os últimos cinco anos sobrevivendo nas ruas do Distrito Federal, exposto à ameaça de doenças e à violência urbana. “O vício é o que estraga a confiança entre nós. Quando tem droga a gente compartilha, mas quando você não tem, e se o seu parceiro não te ajudar, você vai querer pegar a força, e aí fica pior”, afirma.
De acordo com um levantamento feito pelo Serviço Especializado de Abordagem Social (Seas), em 2015 havia cerca de 4 mil moradores de rua em Brasília. Para o coordenador geral da Casa Santo André, Cleven Rodrigues, grande parte da população de rua não sabe que pode sair desse contexto. “As pessoas acham que é mentira quando alguém diz que tem uma casa de apoio, com comida de graça para elas ficarem”, diz.
Graças ao trabalho desenvolvido pela Casa Santo André, a vida de Manoel ganhou um novo capítulo e, dessa vez, a história tem mais chances de um final feliz. Desde que aceitou a ajuda, ele tem acompanhamento médico em um CAPS e é atendido por meio da metodologia de redução de danos, trabalho que mostra resultados. “Por causa da medicação para ansiedade, eu consegui deixar a cocaína. Agora estou usando só maconha e cigarro”, admite. Cheio de planos para o futuro, ele pretende se mudar para Anápolis (GO) e reconstruir a vida mais perto dos familiares.



Problema ou solução?
Diversos países já possuem uma política de drogas consolidada. É o exemplo de Portugal, referência em todo o mundo quando o assunto é legalização e descriminalização de entorpecentes. Mas antes de entrar nessa discussão sobre legalizar e descriminalizar algo, vamos entender qual é a diferença entre os dois termos para evitar confusões:

Desde 2010, Portugal trata a posse de drogas para consumo pessoal como um delito administrativo. Além disso, a prisão foi trocada por multas. Quando essa mudança na legislação aconteceu, esperava-se um grande aumento no uso e no tráfico. Ao contrário das expectativas, o número de usuários diminuiu e a violência também.
Por lá, quem é pego portando entorpecente para uso pessoal, por exemplo, em vez de ser preso, é levado para a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência. Uma das missões desse comitê é encorajar a busca por tratamento. O que antes era caso de polícia virou uma estratégia de acolhimento aos dependentes químicos.
Olhando a realidade do Brasil, onde todos os dias a imprensa conta casos de apreensão de grandes quantidades de drogas, tráfico e crescimento da violência, seria o momento certo para a legalização e descriminalização dessas substâncias? O país estaria preparado para dar esse passo?

No Brasil
A lei de drogas brasileira existe desde 2006 e, entre outros pontos, define crimes e estabelece normas que proíbem a produção não autorizada e o tráfico ilícito de entorpecentes. Movimentos pró-legalização e descriminalização trabalham para que pelo menos a maconha seja liberada. Porém, a luta não tem sido fácil. Os grupos contrários a isso acreditam que, com a permissão para o uso livre da erva, o caminho para legalizar outras drogas mais pesadas ficaria aberto, podendo haver aumento no número de dependentes químicos.
Mas além dessa batalha constante pela legalização da maconha ou de todas as drogas, como defendem grupos mais extremos, há uma polêmica que corre no Supremo Tribunal Federal (STF). Desde 2015, a Corte discute a Lei de Drogas. A intenção é tornar inconstitucional o artigo 28 da legislação.


Acontece que o ministro Gilmar Mendes, relator da ação no STF, já votou a favor da descriminalização de todas as drogas, o que eliminaria por completo o artigo 28 da lei. Caso a maioria do Supremo vote com o relator, o porte de entorpecentes para usuário próprio deixará de ser crime. Decisão essa que divide opiniões.
Apesar do embate entre favoráveis e contrários à legalização e descriminalização, ambos os lados concordam em um ponto: muitas pessoas estão presas atualmente por conta de envolvimento com drogas, o que causa superlotação nos presídios. A diferença é que um lado culpa a legislação por isso. Já o outro, diz que falta, na verdade, a aplicação devida da lei.
No ano de 2016, o Instituto Trabalho, Terra e Cidadania (ITTC) – organização que atua em defesa dos direitos de cidadãos em conflito com a lei – divulgou um levantamento sobre 36 países na América e na Europa que, de alguma forma, flexibilizaram as políticas de drogas. O resultado: 22 deles (ou 61%) registraram crescimento no número de presos desde as mudanças.
Ao longo dos 19 anos de atuação, o ITTC, tem observado o aumento do encarceramento por crimes relacionados a entorpecentes no Brasil, principalmente o feminino, que cresceu 84,5% entre 2005 e 2014. A partir disso, o instituto levantou o seguinte questionamento: os países que adotaram leis de drogas tolerantes, principalmente com o uso, conseguiram diminuir o encarceramento?
De acordo com os organizadores do estudo, “a criminalização do comércio de drogas é uma escolha política de criminalização do trabalho de uma parte da população. Nesse mercado lucrativo para poucos, milhares de pessoas pobres, jovens, mulheres e negras, parcela mais frágil dessas relações, pagam com a vida e a liberdade por trabalharem no varejo de substâncias consideradas ilícitas.”
Andrea Gallassi e Roberto Lassere representam as duas diferentes perspectivas nessa discussão sobre a legalização e descriminalização das drogas. Ela, favorável, é professora da Universidade de Brasília e coordena o Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da instituição. Ele, contrário, é do Movimento Brasil sem Drogas.
Qual a sua opinião sobre o assunto? Confira a entrevista com os especialistas abaixo:

Andrea Gallassi, professora da UnB e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades
Por que ser a favor da legalização e descriminalização das drogas?
A proibição é uma forma de regulação que traz mais prejuízos do que um processo responsável. O exemplo é o que está acontecendo no Rio de Janeiro. Por conta do tráfico, da guerra que existe entre facções, milícia e o Estado, a gente vive esse agravamento na questão da criminalidade e da segurança pública. A partir do momento que eu proíbo a comercialização de uma substância que tem demanda, eu crio um mercado paralelo que vai estabelecer as suas próprias regras. Existe muita demanda para isso. Mesmo impedido, a proibição não afasta as pessoas do consumo.
Mas é o momento certo para essa regulação?
Se não existe um Estado que regule os critérios para oferecer essas substâncias, cria-se um mercado paralelo, que é altamente rentável sem regulação. Como consequência, temos o enriquecimento de grandes organizações criminosas que usam essa proibição para o seu fortalecimento e aumento de poder. Vivemos uma grande guerra entre um Estado que pretende combater um setor mais organizado e rico do que o próprio Estado.
Os impactos disso são devastadores...
A grande consequência é a violência, são as mortes constantes, o controle de espaços territoriais. Você tem um efeito em cadeia tão grave, que quem se prejudica é a sociedade de maneira geral: tanto quem usa quanto quem não utiliza drogas. Além disso, a gente cria problemas adicionais com a criminalização desse tipo de ato, o que resulta em muitas prisões. Consequentemente, vivemos hoje também uma crise no sistema penitenciário muito grave.
Existe algum tipo de modelo que você se inspira para essa legalização e descriminalização?
A gente tem várias experiências de legalização pelo mundo, como no Uruguai e em vários estados norte-americanos. Temos também casos de descriminalização em Portugal. É uma série de experiências, mas não queremos que o modelo brasileiro seja uma cópia desses outros países. Nos inspiramos nos resultados mais efetivos para moldar um sistema que seja bom para as nossas necessidades.
Vocês já estão com um passo à frente para a descriminalização com a ação que corre no STF?
Se a gente conseguir avançar com essa discussão no Supremo Tribunal Federal, que já tem três votos favoráveis, vamos dar um pequeno passo no ponto de vista prático. Retiraremos da esfera criminal as pessoas que usam drogas, que são pegas com as substâncias, e começaremos a investir em estratégias de saúde e assistência social para essa comunidade.
O tráfico está longe de ser resolvido no país. Essas mudanças não abririam ainda mais as portas?
Nós, ativistas, não queremos um modelo de livre comércio porque maconha, por exemplo, não é uma substância qualquer. Precisamos de uma regulação completa, que se inspire na legalização do cigarro no Brasil – um modelo muito bom e inspiração para o mundo.
Mas nós estamos preparados para permitir todas as drogas?
Com relação às drogas, nós temos dois exemplos de regulação: um muito bem-sucedido – que é o cigarro – e um exemplo muito ruim – que é o álcool. A partir do momento que a gente pensa no nosso modelo, nos inspiramos com certeza no tabaco no Brasil. Vai ter uma série de restrições de local de uso, onde vender e até de produção. A gente deseja uma presença forte do Estado nesse processo, mas também pensando em possibilidades mais cooperativas.
Como a senhora afirmou, existe uma grande demanda para essas drogas. Você não acredita que essa regularização aumentaria ainda mais os índices de dependência química?
Pode até ser que haja. Lugares que descriminalizaram, no primeiro momento, tiveram um pequeno aumento. Mas depois veio um resultado positivo também. É o que aconteceu na República Tcheca. Existe até essa possibilidade de aumentar a dependência química, mas a tendência é que com uma regulação efetiva haverá investimentos naquelas pessoas que já são consumidoras de drogas. Aí vai afastar do acesso outras que não se relacionam com as substâncias. A regulação não pode ser compreendida como um livre comércio.
O governo passaria a deixar de investir em combate às drogas. No entanto, os gastos na saúde não seriam ainda maiores?
É uma questão sempre presente neste debate. Mas a partir do momento que conseguirmos regular as drogas, deixaremos claro que o uso das substâncias vai continuar sendo facultativo. Usa quem quer. Como exemplo, temos o cigarro, que é uma substância lícita, e nem por isso as pessoas consomem outros entorpecentes. O álcool é licito, mas metade da população não o ingere. Essa ideia que passa pela cabeça de muitos não é correta. O modelo de regulação responsável prevê ações de prevenção e de assistência, de forma que leve a sociedade a compreender mais o assunto. Existem pessoas que podem ou não fazer uso. É a mesma coisa da compra de antibióticos, por exemplo. Existirão critérios.
Levando em consideração a realidade da segurança pública, teria de haver uma readequação no setor?
Vai ter, sim, de ter essa reorganização de prioridades dentro das corporações policiais. Costumo dizer que a questão das drogas é tratada como um fetiche policial e até da sociedade como um todo. Elegem-se as drogas como o pior dos males, o inimigo social a ser combatido. E a gente esquece dos outros direitos. A partir do momento que a droga passa a não ser tratada com prioridade pela segurança pública, as investigações de crimes, por exemplo, ganharão mais força.

Roberto Lassere, diretor do Movimento Brasil sem Drogas
Qual a sua avaliação sobre a política de drogas do Brasil?
Até então, a política de drogas do Brasil estava norteada na questão da redução de danos, que é uma evolução. Mas vejo essa redução como uma possibilidade, e não pode ser necessariamente o objetivo final. O que vinha se buscando é que, no final, a pessoa se abstenha do consumo da droga. É como se o usuário trocasse uma substância mais forte por outra que faz menos mal. Porém, sabemos que vai fazer mal de qualquer jeito. No entanto, houve uma mudança recente, realizada pelo Conselho Nacional de Política Sobre Drogas (Conad), reconhecendo o desejo da população brasileira de não haver consumo dos entorpecentes. Hoje no país nós também temos os Centros de Atenção Psicossociais (Caps), que é dever do governo. Só que são poucas unidades, a quantidade de profissionais é menor ainda e a qualidade é pífia. Verificamos que o tratamento dos dependentes está sendo feito pelas comunidades terapêuticas. Elas estão servindo como braço. Realizam um trabalho que o poder público se omite a fazer.
A maconha está mais próxima de ser legalizada que as outras drogas. É um avanço?
Não preciso nem responder. Vamos aos fatos. Hoje, as pessoas começam a consumir maconha com 11 anos de idade, em média. E sabemos que o desenvolvimento cerebral vai até 22. Se você já começa a usar com essa idade, imagina como chegará aos 22? Com, no mínimo, 25% a menos de capacidade cognitiva. Cerca de 30% da evasão escolar está relacionada com o consumo direto da erva. A pessoa perde o interesse do estudo porque o cérebro começa a não trabalhar de uma maneira efetiva. Talvez em um curto prazo você continue a ter uma evolução normal, mas com o passar do tempo os problemas começam a surgir. Uma das consequências é o absenteísmo no trabalho, por exemplo. Pessoas muito novas estão deixando de exercer uma função na sociedade.
Por que ser contra a legalização e descriminalização?
Não somos a favor de nada. Nem das drogas consideradas lícitas, muito menos das ilícitas. Podem ser até substâncias legalizadas, como o tabaco e a bebida, mas o Movimento Brasil Sem Drogas tem a mesma vontade de lutar pelo fim de todas. A gente sabe que o álcool, por exemplo, já é ruim e quando consumido com outros entorpecentes o poder é devastador em todos os sentidos. O Brasil é um país que não investe na questão das drogas. É muito tímido o repasse para a área. A droga hoje é responsável por problemas sérios familiares e sociais – entre eles, a violência. No Brasil é assim: quando o Estado já não consegue mais controlar algo, então libera-se tudo.
O Brasil está preparado?
O país não tem a mínima capacidade. Como coordenador do Movimento Brasil Sem Drogas e também como cidadão e advogado digo: se a nação não tem capacidade de tratar os seus usuários, com a realidade que temos hoje a nível de saúde e segurança pública, imagina se for tudo liberado. No estado do Colorado, nos Estados Unidos, por exemplo, aumentou em 34% o número de jovens pegos em idade escolar fazendo uso de maconha. Exatamente no período de desenvolvimento cerebral. E olha que os Estados Unidos é país de primeiro mundo. Agora imagina o Brasil. Além disso, o tráfico não deixará de existir. Você acha que o usuário vai deixar de comprar por R$ 5 na mão do traficante, para pagar R$ 15 na mesma quantidade depois de legalizado?
As prisões têm muita gente condenada por tráfico. A legalização e descriminalização, na verdade, não ajudariam a enxugar um pouco as penitenciárias?
O artigo 28 da Lei das Drogas determina que não existe pena de prisão para o usuário. Existem outros tipos de punição para essas pessoas. Os legalistas têm a mania de falar que os juízes estão colocando todo mundo na cadeia. Isso não é verdade. O juiz analisa o caso concreto e as circunstâncias envolvidas, como diz a legislação. Então, essa maioria dessas pessoas que estão presas são traficantes. O grande traficante não é usuário, porque ele sabe muito bem o mal que a droga faz. Eles vendem, da verdade, a morte para as outras pessoas. Não venha dizer que o “hiperencarceiramento” de hoje é só por conta do tráfico de drogas, que não é verdade.
Você é contrário, mas então qual seria a melhor alternativa?
O fato é que não legalizar e descriminalizar ainda inibe o consumo de muita gente. Mas a melhor solução é a mão pesada da lei nos traficantes. Eles precisam ser tratados como tal. O traficante sabe que está vendendo a morte, e mesmo assim continua vendendo. E quando ele vende a morte, não é só para uma pessoa. É vendido para até 25 pessoas. A cada usuário de entorpecentes, existem até 25 pessoas que estão circundando ele entre família, amigos, entre outros. Esses indivíduos também são diretamente afetados, os codependentes. Agora, imagina a quantidade de dependentes no Brasil e multiplica por 25... São inúmeras pessoas afetadas pela mazela das drogas. A solução é fazer com que as leis sejam devidamente aplicadas.


Codependência: uma dor que machuca todos
Os efeitos do abuso de álcool e outras drogas atingem também o contexto social do usuário. Diante da situação, familiares e amigos acabam dependentes, mas não de alguma substância, e, sim, viciados em cuidar do adicto e em tentar tirá-lo dessa situação.
Para a psicóloga Alline Silva, a codependência é um cuidado exacerbado em torno de um doente —, no caso alguém que faz uso abusivo de substâncias psicoativas. Segundo ela, é importante que a ajuda seja oferecida na medida certa, para que o cuidador não acabe doente também. “É muito comum a mãe acolher o filho dependente de tal forma que passa a viver em função dele. Quando esse filho se recupera, ela não sabe o que fazer da própria vida”, diz.
"Quando se tem um dependente químico na família, todos precisam de tratamento"
Alline Silva, psicóloga

Quando percebem que todo o cuidado e amor não são suficientes para a recuperação de um parente ou amigo dependente de drogas, a sensação de impotência pode gerar alterações no comportamento dos codependentes, como compulsão pela vida do outro, angústia e ansiedade. “Por isso, quando se tem um dependente químico na família, todos precisam de tratamento”, avalia Aline Silva.
Um sofrimento que não cabe em palavras
Outra explicação sobre a codependência está relacionada à história de vida do indivíduo. Segundo o psiquiatra Pedro Leopoldo, alguém que conviveu com um parente viciado tende, ainda que de forma inconsciente, a estar próximo de pessoas nesta situação, como, por exemplo, uma mulher que teve o avô e o pai alcoolistas. “Essa filha não bebe, mas a conceituação dela de homem tem alcoolismo no meio e a tendência é que escolha alguém nessa condição”, afirma.
Foi o que aconteceu com a dona de casa Maria Renata, 62 anos. O esposo se tornou alcoólatra e morreu, aos 50 anos, de falência múltipla nos órgãos, condição associada ao vício. Viúva e com quatro filhos para criar, ela não é capaz de contar quantas noites passou em claro preocupada com cada um deles. O primeiro desafio de mãe solteira foi lidar com o filho caçula, que estava bebendo e “dando trabalho” na escola. Algumas broncas depois, tudo estava sob controle. “Eu conversei muito com o Maciel e acabei tirando ele da situação. Foi ele quem me ajudou a enfrentar as batalhas que vieram depois”, lembra.
"Minha vida era chorar e orar. Eu perguntava para Deus: o que eu fiz de tão ruim para estar nessa situação"
Maria Renata, 62 anos

Mas os conflitos em família estavam apenas começando. Logo Maria Renata percebeu uma mudança no comportamento das filhas Ana Paula e Aline, que, sempre muito unidas, caminharam juntas rumo ao mundo das drogas.
Aline, na época com 16 anos, começou a mentir para poder dormir fora de casa e, por diversas vezes, sumia sem dar notícias. A união das irmãs era tanta que, mesmo sabendo de tudo, Ana Paula não dava nenhuma pista do paradeiro da cúmplice, e a mãe peregrinava pelas ruas em busca da filha. “Às vezes alguém dizia que viu Aline bêbada em tal lugar e eu ia bater lá para trazer ela de volta. Já me enfiei em cada canto atrás dessa menina”, lembra.
Foi então que Renato, o filho mais velho, resolveu ajudar, e decidiu acompanhar as irmãs sempre que iam para alguma festa. Mas o que parecia o alívio, se tornou apenas mais uma parte da tortura sofrida pela mãe, pois, pouco tempo depois, ele também passou a consumir drogas. “Minha vida era chorar e orar. Eu perguntava para Deus: o que eu fiz de tão ruim para estar nessa situação”?
Os filhos de Maria Renata podem ter herdado o vício do pai alcoólatra, como sugere um estudo feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa aponta que ter pais com algum tipo de vício aumenta as chances das próximas gerações desenvolverem o problema. A análise mostra, ainda, que no caso do álcool, o meio em que a pessoa convive também influencia no uso descontrolado da substância.
Foram anos vendo os filhos chegarem drogados em casa, até que o desespero tomou conta de Maria Renata e ela pensou em abandonar tudo e se mudar para o Nordeste, mas foi convencida a ficar pelo filho caçula. “Mesmo me sentindo traída pelos meus filhos eu nunca desisti porque a esperança de uma mãe não se esgota”, diz.
E foi essa esperança que fez a mãe cuidar dos filhos até as últimas consequências, como quando via Renato passando mal após usar cocaína. “Era só usar que ele ficava babando e tendo convulsão, aí eu dava leite e água para ele até melhorar”, relata. O limite físico fez Renato aceitar ajuda e ele foi internado em uma comunidade terapêutica. “Eu sou muito grata a Deus por meu filho ter conseguido esse tratamento e espero que ele saia dessa situação”, diz.

Consciência
Internada na ala feminina da mesma comunidade terapêutica que o irmão, Aline, hoje com 29 anos, tenta se livrar do vício em cocaína, e lembra de cada passo que deu em direção a autodestruição. Acostumada a fumar e a beber desde a adolescência, ela conta que só começou a usar outros tipos de drogas após o fim do casamento com um ex-traficante. “Eu comecei a frequentar um bar onde todo mundo usava. Minhas amigas ficaram botando pilha e eu comecei na maconha, e depois fui para a cocaína”, diz.
Após algum tempo de uso, Aline começou a sentir na pele os danos causados pelas drogas, como emagrecimento, espasmos involuntários e depressão. Preocupada, ela conta que chegou a comentar com a irmã Ana Paula, – com quem costumava usar drogas – que buscaria ajuda. “Ela disse que eu ia passar vergonha se fosse para uma casa de recuperação”, lamenta. “Eu cheguei num ponto que só conseguia me alimentar e dormir se fumasse maconha, e quando eu cheirava ficava alucinada pensando que tinha gente atrás de mim”, revela.

Com medo de chegar em uma situação pior, e temendo pelo futuro do filho de 10 anos, ela decidiu clamar pelo socorro da família. “Eu confessei tudo à minha mãe. Pedi para ela me internar porque meu medo era acabar no crack”, desabafa. A mãe, Maria Renata, e Maciel, o irmão mais novo, organizaram a ida de Aline para a comunidade terapêutica. “Antes de sair de casa eu expliquei para o meu filho para onde eu estava indo, que cheguei no fundo do poço, e ele entendeu”, completa.
Ao recordar a história dos filhos e os anos de sofrimento, Maria Renata diz que não sabe como conseguiu suportar tanta dificuldade, e como ainda tem ânimo para criar os netos. “A minha força vem de Deus, porque eu só tive ajuda dele e do Maciel para enfrentar tudo”, agradece.
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Onde encontrar ajuda?
Para o psiquiatra Pedro Leopoldo, ninguém adoece sozinho no ambiente familiar, e a codependência é um ponto fundamental para tratar o abuso de substâncias psicoativas. “Tratar a dependência não é igual a tratar uma gripe. Exige reconhecimento e renúncia, e na casa onde vive alguém com este transtorno, todos precisam de cuidados”, aponta.
Para tentar aliviar o fardo de quem está inserido nesse contexto, existem os grupos de apoio como o Al-Anon, uma associação de parentes e amigos de alcoólicos, que se reúnem para compartilhar experiências e, a partir disso, tentar solucionar os problemas que têm em comum.
Carmem (nome fictício) lamenta não ter encontrado um grupo de Al-Anon aos 20 anos, quando lidava com o alcoolismo do pai. Ao recordar os momentos difíceis, ela faz uma viagem no tempo e pode rever a cena que encontrava quase sempre que chegava em casa após um dia de trabalho e estudo. “Minha mãe no cantinho chorando e os meus irmãos mais novos encolhidinhos numa cama... Ele batia em todo mundo depois ia dormir. E eu me perguntava: por que meu pai não morre”?
O socorro que Carmem tanto precisava para aprender a conviver com aquela situação só chegou anos depois do pai morrer em um acidente de carro. Ao ver um amigo indo pelo mesmo caminho do alcoolismo, decidiu ajudá-lo e o encorajou a participar das reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA). Como ela não tinha problemas relacionados ao uso de bebidas, foi encaminhada ao Al-Anon. “Quando eu participei da primeira reunião e vi aquelas pessoas contando as histórias era como se eu tivesse vivenciando aquilo de novo, então eu percebi que a doença do alcoolismo é igual para todo mundo”, conta.
Segundo a coordenadora do serviço de informação do Al-Anon, R. Silva, o auxílio para familiares e amigos vem da troca de experiências, da espiritualidade e da literatura, como explica R. Silva. “É dentro dessas leituras que a gente vai crescendo. Nós seguimos os 12 passos e as 12 tradições usados no AA e adaptados ao Al-Anon para ajudar no processo", explica.
Para ser um Al-Anon basta ter um parente ou amigo alcoólico. Os grupos preservam o anonimato e não é necessário pagar nenhuma quantia para participar das reuniões.
No Distrito Federal existem outros grupos familiares que oferecem apoio, confira:
VOCÊ PRECISA DE AJUDA?
Al-Anon (61) 3273-0404
Amor Exigente (61) 3226-0300
Ame, Mas Não Sofra amemasnaosofra@sejus.df.gov.br
Nar-Anon (21) 2263-6595

Reinserção social
A última fase do tratamento de um dependente químico é a reinserção social. Após oito meses de tratamento Pedro (nome fictício), 28 anos, começou a viver esse desafio. A cada 15 dias ele visita a família, numa área nobre de Brasília, e tenta reconquistar a confiança deles.
Por causa do vício em crack, Pedro abandonou o emprego, e os pais tiveram que dar ajuda financeira para as necessidades da esposa e dos quatro filhos. “O vício me fez tirar a comida da boca dos meus filhos para dar dinheiro ao traficante. Minha filha não tinha um chinelo para ir à escola enquanto o filho do traficante andava de tênis de marca”, assume.
No Brasil, dependentes químicos que contribuem com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) podem ter direito ao auxílio-doença quando estão em tratamento. De acordo com o último levantamento da Previdência Social, o INSS concedeu mais e 134,6 mil auxílios-doença para pessoas nessas condições em todo o Brasil. Grande parte da ajuda é no valor de um salário mínimo e, para bancar todos os benefícios, o instituto gastou quase R$ 27 milhões, em 2013.
"O vício me fez tirar a comida da boca dos meus filhos para dar dinheiro ao traficante"
Pedro, 28 anos
Atormentado pela própria consciência, Pedro tentou encontrar um emprego, mas a tentativa frustrada o fez buscar alívio no crack. Após ter usado todo o dinheiro que ainda tinha para consumir a droga e passado o efeito do entorpecente, o único pensamento era o de buscar ajuda. E ele foi. “Se continuasse eu iria começar a roubar, mas minha cabeça dizia que aquilo não era para mim, então, fui no CAPS pedir socorro e eles me encaminharam para cá”, lembra. Desde então, Pedro segue o tratamento à risca e sonha em voltar a trabalhar para reassumir o papel que tinha dentro de casa, o de prover as necessidades dos filhos.
Para ajudar ex dependentes químicos a retornar ao mercado de trabalho, uma lei distrital garante reserva mínima de 1% do total de vagas em contratos de qualquer natureza no Governo do Distrito Federal (GDF). A medida faz parte de um programa de estratégias para a reinserção deles no mercado de trabalho. Para participar do programa, o adicto deve estar em tratamento em uma das instituições credenciada ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e cumprir, rigorosamente, os requisitos da empresa contratante.
Na comunidade em que se trata, Pedro aprende a profissão de coaching na área da prevenção e combate ao uso de drogas e estuda para o vestibular, pois sonha em trabalhar como educador físico.

Os desafios para a nova vida
Leandro (nome fictício) tinha apenas 12 anos quando a mãe faleceu. Sem contato com o pai, que foi preso por assassinato quando ele ainda era criança, precisou morar com uma tia, que não conhecia. A nova rotina mexeu com a cabeça do então adolescente, e ele não conseguia se adaptar ao estilo de vida, pois se sentia preso no novo lar. “Eu sempre tive vontade de conhecer o mundo e quando eu tive o contato com a malandragem da rua, aquilo tinha um brilho especial, chamava minha atenção”, conta.
O convívio nas ruas apresentou a Leandro um mundo de opções, como a maconha o álcool e a cocaína, instrumentos que, segundo ele, traziam autoconfiança necessária para as ações criminosas que começou a praticar. A evolução foi muito rápida, e aos 16 anos ele já havia usado tanta droga que o organismo não suportava. “Eu já cheguei a surtar, não me conhecer, ficar agressivo e desconhecer meus camaradas.”
A psiquiatra Maria Célia Brangioni alerta que o consumo de drogas durante a adolescência pode causar danos irreversíveis. “Há inclusive, alterações cerebrais importantes, que podem comprometer o desenvolvimento desse adolescente”, ressalta.
"Aquilo tinha um brilho especial, chamava minha atenção"
Leandro, 23 anos
Refém do desejo incontrolável, Leandro conta que roubou, se prostituiu e até esfaqueou pessoas para conseguir a pedra. Por três anos ele sobreviveu nas ruas com a ajuda de pessoas que faziam trabalho voluntário e ofereciam tratamento. Aos 19 anos ele decidiu se internar em uma comunidade terapêutica. “Por uma vontade consciente eu pedi ajuda, mas não era aquilo que eu queria de verdade, era só para dar um tempo, porque usar drogas era massa”, admite.

Após cinco meses de tratamento, Leandro foi mandando embora, pois todos os dias fugia para pegar drogas no bairro vizinho e usar dentro da comunidade terapêutica. Com isso, ele voltou para as ruas, pois, devido ao histórico de uso e várias passagens pela polícia não tinha mais o apoio da família. “Eu lembro da primeira vez que eu fui preso. Quando saí fui pedir refúgio na casa da minha tia e ela falou que lá não era lugar para mim.”
A saga em busca da sobriedade teve um longo caminho e, por diversas vezes, ele não resistiu às recaídas, o que deu origem a uma rotina entre a vida na rua e a tentativa de tratamento em alguma comunidade terapêutica.
De acordo com a especialista Maria Célia Brangioni uma das etapas mais importantes do tratamento da dependência química é quase que deixada de lado: a prevenção a recaída, ferramenta que, segundo ela, é essencial para ensinar o adicto a ficar longe da droga. “Quando a pessoa faz essa parte do tratamento a chance de recair é muito menor e, quando acontece tende a ser mais branda porque ela sabe que precisa buscar ajuda constantemente”, afirma.
Um dia de cada vez
Na sétima internação, Leandro pensou estar livre do vício, e quando o tratamento acabou ele decidiu refazer a vida. Com a ajuda da comunidade terapêutica que se tratou ele conseguiu um emprego, alugou uma casa e conquistou uma namorada. Mas seis meses depois, acabou entregue ao vício outra vez. “Comecei a furtar, fui para a rua de novo e logo estava no mesmo estágio de antes”, lamenta.
Em um momento de lucidez, ele buscou ajuda novamente e foi acolhido pela segunda vez no Instituto Crescer. Hoje, aos 23 anos, Leandro entendeu que a batalha contra a dependência química ocorre um dia de cada vez. Desde que foi recebido de volta, atua como voluntário e auxilia os outros acolhidos no processo de recuperação. “A minha mudança é nítida, mas eu não me sinto orgulhoso, porque é sinônimo de queda. Me sinto grato e sei que ainda preciso me conhecer mais, porém sei que estou no caminho certo, pois me sinto em paz”, celebra.

"Além do Vício" é uma grande reportagem multimídia produzida como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo do Centro Universitário IESB (Brasília-DF).

Gustavo Azevedo

Marciana Alves
Orientação
Profa. Dra. Luísa Guimarães Lima
Brasília
2018
